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Foto do escritorRenan Souza

[Conto] Rede Brasil de Televisão


- E agora com vocês, a alegria das tardes de domingo: Augusto Arruda!


O apresentador recebia nos bastidores o último retoque de pó de arroz no rosto, um tanto preocupado que este manchasse seu impecável terno.


- Boa tarde, minha gente! Boa tarde, auditório! Boa tarde, Brasil!


As dançarinas rebolavam ao som do tema do programa. A plateia feminina recebia o carismático apresentador batendo palmas, de pé. Augusto Arruda fazia pequenos passos coreografados com o motivo do programa executado pela banda. Os holofotes se acenderam bem acima do apresentador e o estúdio ficou todo iluminado, com as bailarinas de um lado, a banda do outro e, no fundo do palco, o grande e colorido logotipo com o símbolo do programa Tarde Alegria.


- Bem vindos a mais um programa Tarde Alegria! É um grande prazer estar aqui com vocês todos os domingos, apresentando o show da família brasileira na nossa querida Rede Brasil! Você ai do outro lado da telinha, reúna a sua família! Junte os seus amigos ao redor da televisão! Chame os seus vizinhos! Vai começar agora mais um Acerta ou Afoga!


"O Arruda vai fazer

Uma pergunta pra você

Se responder errado,

Você morre afogado!"


- Este é o quadro Acerta ou Afoga! Esse jogo é muito simples e divertido! Um participante vai entrar na cabine e eu vou fazer uma pergunta. Se a pergunta for respondida corretamente ele vai ganhar um prêmio das Lojas Ararajuba, a número um em eletrodomésticos em todo o Brasil! Se ele errar a pergunta acontece o que, auditório?


- ÁGUA! - Respondeu a audiência alvoroçada.


- Vamos chamar o nosso primeiro participante de hoje! Uma salva de palmas para o Senhor Emílio!


Um senhorzinho adentrou o estúdio, emocionado. Talvez nunca tivesse visto tantas luzes piscantes e tanto barulho. A plateia estava entusiasmada. Ficou um pouco ofuscado porque a coxia estava bem menos iluminada do que ali no palco, na companhia do grande Augusto Arruda.


- Boa tarde, Seu Emílio! Como vai o senhor, tudo bem?


- Tudo bem, obrigado, Arruda. É um prazer imenso conhecer você!


- O prazer é todo meu, Seu Emílio. O senhor já conhece as regras do jogo?


- Claro! Eu e minha mulher assistimos ao programa todo domingo!


- Opa, que coisa boa! Qual o nome da sua esposa?


- Jurema.


- Um abraço pra senhora, Dona Jurema! Obrigado pelo seu carinho e pela sua audiência! Seu Emílio, por favor, entre na cabine!


O auditório aplaudia e a música tocava. O velho foi acompanhado até a cabine por uma ajudante de palco seminua e assim que entrou, a caixa foi vedada por fora. Dentro havia apenas o Sr. Emílio e uma espécie de chuveiro.


- Vamos à primeira pergunta! O senhor está pronto, Seu Emílio?


- Sim, estou pronto! - Respondeu vigorosamente o aposentado.


- Então escolha um número de um a dez!


- Número três!


- Vamos ver o que tem atrás do número três, sabendo que cada número é sempre premiado com um produto de qualidade oferecido pelas Lojas Ararajuba. Vamos ver... Uma batedeira! O senhor tem batedeira em casa, Seu Emílio?


- Tenho, mas já está velha. - Respondeu Seu Emílio, em tom descontraído.


- Então se o senhor acertar essa pergunta vai ganhar uma novinha em folha! E a pergunta é a seguinte: quem foi que descobriu a América? Tempo para o Seu Emílio!


Sr. Emílio respirou fundo. Tentou puxar pela memória... Era um homem humilde, de pouco estudo. Havia aprendido a ler já na idade avançada e passou toda a vida no interior, trabalhando no cafezal. Suas mãos denunciavam um trabalho abusivo, daqueles em que se usa muito bem uma peixeira, mas não se necessita segurar uma caneta. Quem descobriu a América... Seu Emílio não estava sequer pensando no continente, mas sim naquele pais de onde vem todas aquelas coisas estranhas... Aquele país onde fica a Estátua da Liberdade.


- Acabou o tempo! Qual é a resposta, Seu Emílio?


- Pedro Álvares Cabral!


- Ah, que pena Seu Emílio... Pedro Álvares Cabral foi o descobridor do Brasil. Quem descobriu a América foi Cristóvão Colombo! Água no Seu Emílio!


A cabine se encheu por aproximadamente um terço. Emílio não era um homem alto. Se a cabine enchesse por mais um terço a água já lhe bateria no pescoço.


- Mais um número, Seu Emílio!


- Número nove!


- Vamos ver o prêmio que as Lojas Ararajuba esconderam aqui atrás do número nove, é sempre um produto de qualidade para a sua casa... Uma máquina de lavar! Valendo uma máquina de lavar, Seu Emílio: qual país venceu a Copa do Mundo de 1998? Tempo!


Emílio coçava a barba. Não assistiu à Copa do Mundo de 1998. A energia elétrica só chegou à vila sertaneja onde vivia em 2002 e aquela foi a primeira Copa do Mundo que assistiu. Na verdade, futebol nunca esteve tanto na vida de Seu Emílio, exceto por uma ou outra pelada que jogava quando era mais jovem. O idoso também não apreciava muito essa tal de televisão... Preferia passar o tempo na sacada do casebre, sentado, mascando tabaco e apreciando a vista monótona da plantação sob a luz suave da lamparina que pendia na viga. Conhecia o nome dos grandes ídolos do futebol: Pelé, Maradona... Mas 1998? Não fazia ideia de que país ganhou a Copa do Mundo.


- Não vale soprar! - Alertou Arruda.


Tentava se lembrar pelo álbum de figurinhas do seu sobrinho, que visitou na cidade grande há tantos anos. Mas quem era o vencedor daquela Copa do Mundo? Aquela Copa do Mundo era a de 1998, pelo menos? Talvez fosse a de 1994... Quando havia sido aquela viagem mesmo? E se no álbum nem houvesse a informação de quem havia vencido o torneio?


- O tempo acabou! O senhor sabe qual é a resposta, Seu Emílio?


- Eu não me lembro muito bem... Foi o Brasil?


- Será que foi o Brasil? Suspense, auditório!


A plateia estendeu as mãos e começou a tremê-las, até que sirene da resposta incorreta soou.


- Que pena! Quem venceu a Copa de 1998 foi a França. A França venceu o Brasil na final, o senhor não se lembra, Seu Emílio?


- Ah, eu fiquei na dúvida! - Desconversou o velho.


- Água nele! - Comemorou o apresentador.


A água subiu mais um terço. Seu Emílio estava quase na ponta dos pés e o auditório ficou em êxtase.


- Se o senhor responder mais uma pergunta errado o senhor vai morrer, hein Seu Emílio? Cuidado! Mais um número, Seu Emílio!


- Número quatro!


- Vamos ver o prêmio por trás do número quatro... Um liquidificador! Valendo um liquidificador das Lojas Ararajuba, a escolha da família brasileira: que ator estrelou o clássico filme Cantando na Chuva? Dez segundos para o Seu Emílio!


A resposta era Gene Kelly. Não que Seu Emílio soubesse disso... Já tinha ouvido falar do filme, mas mesmo que o tivesse assistido, jamais conseguiria pronunciar corretamente o nome do ator.


- Acabou o tempo! Esta pode ser a última pergunta da sua vida, Seu Emílio! O senhor está preparado para morrer se errar a resposta?


- Claro que sim, é um prazer estar aqui no programa!


- E qual é a resposta? - Arruda falou por trás do cartão do programa, que segurava com a mesma mão do microfone.


- Eu não sei. - Respondeu o velho, um tanto constrangido.


- Ah, mas que pena Seu Emílio! A resposta correta seria Gene Kelly! Gostaria muito de agradecer à sua presença, Seu Emílio, foi uma grande satisfação conhecer o senhor!


- O prazer foi todo meu, Arruda! Fico muito orgulhoso de ter conhecido você!


- O Seu Emílio respondeu errado, então... - Arruda fez a deixa para que a plateia completasse sua frase, abrindo os braços e erguendo a sobrancelha, como se estivesse consolado.


- VAI MORRER AFOGADO! - O auditório explodia de felicidade, gritando a frase pausadamente, sílaba por sílaba.


- Água no seu Emílio! - Comandou o apresentador.


Seu Emílio acenou para o público enquanto a água lhe cobria a cabeça, sorrindo satisfeito. Não era o melhor tipo de morte, mas era o que a televisão oferecia, e morrer assim, em um programa ao vivo, ainda mais no Tarde Alegria, era uma grande honra para um homem humilde como ele. As câmeras se aproximaram do vidro para capturar toda a expressão da asfixia daquele idoso. Mesmo estando totalmente de acordo com o próprio assassinato, por instinto ainda lutou para sobreviver, socando inutilmente o forte vidro reforçado com as bochechas repletas de ar, debatendo-se e franzindo a testa num misto de terror e cansaço, até que levou as mãos ao pescoço e enfim ficou inerte. O clímax ocorreu quando finalmente os pulmões se esvaziaram em uma última golfada com um filete de sangue que se misturou na água, e Seu Emílio boiou alguns centímetros acima do piso, encostando a cabeça já sem vida no tampo da caixa de vidro. A plateia foi ao delírio, aplaudindo a cena grotesca. Augusto Arruda ficou em cena ao lado da cabine, dançando o jingle do quadro enquanto o corpo de Seu Emílio pairava na água. Quando a banda terminou a música, Arruda encarou a câmera e anunciou a próxima atração do programa.


- No próximo bloco você vai se emocionar com a história da Dona Sônia. Ela é mãe solteira e cria os seis filhos com o salário de faxineira, e ainda cuida da mãe doente. Eu fiquei muito tocado com essa verdadeira lição de vida e resolvi ir até a periferia de Recife para acompanhar essa história. O Tarde Alegria volta logo após os comerciais. Não saia daí!


Fim.

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