A praça está ornamentada com bandeirinhas e sanfonas de papel crepom. Lâmpadas apagadas. Barracas de doces, acarajés, churrascos, brincadeiras. Este é o mês de Junho. O calor é intenso e a sensação térmica aumenta visto que a praça está impregnada com o ar gorduroso e sufocante do óleo das frituras diversas. Mato brota por entre as finas camadas de cimento e pedras portuguesas que fazem o contorno daquela praça no meio do nada.
Esta não é Juazeiro do Norte. Tampouco é Campina Grande, Caruaru ou Mossoró. Aqui é o nada. Não é lugar nenhum e ninguém habita esta cidade sombria e silenciosa. E vagando por este local ermo onde o vento sopra seco e salino, observo sozinho os enfeites da festa junina. Balões de ar decoram brinquedos variados, acomodados no chão de terra batida. É noite. A suave brisa rente ao solo faz subir poeira grossa e vermelha, que dança no ar até pousar suave sobre as estruturas da praça.
E de supetão as luzes se acendem e a praça no meio do nada se enche de vida sem ninguém. A antiga vitrola se liga sozinha tocando músicas típicas e ouve-se um pequeno chiado dos velhos alto-falantes. A fogueira de São João se acende do nada em chama alta e reluzente, fazendo dançar as sombras das barracas de comida. Como que magicamente a bomba de ar a diesel infla o pula-pula soltando fumaça espessa no ar iluminado pelas luzes piscantes. Sente-se o agradável odor de aço lubrificado.
Ao som do acordeom os fogos de artifício são lançados por ninguém, iluminando aquela noite já clara de luar. A alavanca do motor do carrossel move-se por si só, fazendo a estrutura girar e piscar em mil cores sem nenhuma criança, emanando música infantil com o suave tilintar da ferrugem ao sobe e desce dos cavalinhos de madeira.
O cenário é belo. A festa está pronta. Morteiros explodem no céu, envolvendo a atmosfera com cheiro de pólvora. Os busca-pés ziguezagueiam pelo centro da praça encontrando a fogueira maior, tirando lascas de brasa fumegante do carvão. Os balões alçam voo e colorem a escuridão com motivos sacros.
E no auge da festa sem ninguém, ao som da viola e do triângulo, nas luzes ofuscantes e envoltos dos vários odores, da fogueira eis que emanam os espíritos da quadrilha.
São crianças. Aparentemente de seis a onze anos talvez... Saindo um a uma da chama da fogueira com passos calmos e serenos. Suas auras negras contrastavam com a forte luz do fogo. Suas expressões eram vazias e sérias. Seus rostos deformados não transpareciam absolutamente sentimento algum. E à medida que aquelas crianças malditas caminhavam para fora do fogo, mais e mais a praça escurecia, como se o ambiente de forma natural e gradativa voltasse sua atenção ao centro, e em poucos instantes a única luz preponderante que se via era a emitida pela alta chama da fogueira de São João. Os meninos e meninas continuavam a sair do fogo, e obedientemente o carrossel foi perdendo velocidade como se não possuísse mais energia. As máquinas engasgavam e perdiam potência, até que efetivamente toda a praça parou.
Já é a oitava criança a sair de dentro do fogo... As demais se posicionam ao redor da fogueira. Nona... Algumas não possuem olhos. Décima... Outras apresentam sérias depressões no crânio. Décima primeira... Outras ainda possuem grossas cicatrizes, queimaduras e suturas pelo rosto... Décima segunda. Todas vestidas com roupas caipiras e chapéu de palha. E aí vem a Florista... As crianças dão as mãos... A Sinhazinha sai de dentro da chama seguida pela Princesa... Todas disformes, com seus vestidinhos banhados em sangue velho, marrom.
E eis que do fogo sai um homem mais velho, o marcador da quadrilha.
E repentinamente, toda a praça volta à vida em frequência acelerada. O carrossel roda muito veloz, estalando sua estrutura de metal e madeira. A música toca em volume ensurdecedor. A gordura dos acarajés borbulha como se estivesse em uma temperatura altíssima e as crianças fazem pequenos passos coreografados, todos de mãos dadas. Aquelas almas dançavam sob o comando do marcador da quadrilha. A caixa de som chia alto.
"Arriégua! Que caipira mais bonita! Solta esse ódio, criançada!" - Gritou o homem, em tom quase gutural.
As crianças cantavam, e a ciranda girava...
"Quando eu era vivo eu cria no amor
Eu praticava o bem, seguindo as leis do Criador
Morri na mocidade repleto de esplendor
Acreditava em Jesus, na piedade do Senhor
Só não tive a piedade do homem que me matou"
Girava...
"Mamãe batia em mim porque eu era endiabrado
Matei a vagabunda foi com golpe de machado
Papai abusava de minha irmãzinha
Matei o desgraçado esfaqueado na cozinha"
Girava...
"No dia em que morri eu fui deixado para trás
Pelos luminosos entes espirituais
Fui acolhido pelas entidades ditas más
E hoje eu quero sangue,
Quero mesmo,
E eu quero é sempre mais!"
E a ciranda girou. A cantiga foi perdendo volume com a suave brisa que fazia aquelas crianças esfarelarem-se em um pequeno turbilhão. De súbito a fogueira se apagou, os motores pararam, a música cessou e tudo voltou a ser como era antes. A praça enfeitada, sem vida, apenas como que aguardando o próximo mês de Junho, para novamente dar vida àquelas crianças malignas e seu marcador, revivendo por mais um ano a caipira do mal.
Fim.
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